Comece imaginando uma composição de elementos tendenciosamente verticais. Entre eles, figuras ovóides flutuam entrelaçadas. Condensando tal esquizofrenia (in)formal, tem-se um envoltório cúbico translúcido fatiado horizontalmente em seis partes iguais. Um icônico sistema de coordenadas cartesianas contaminado por bolhas amorfas.
Essa poderia ser a descrição de alguma utopia arquitetônica radical do Archigram ou do Superestudio. Mas não. Trata-se da proposta para a Biblioteca Nacional da França (Très Grande Bibliothèque) assinada pelo OMA em 1989. Como segundo colocado no concurso que elegeu Dominique Perrault, Rem Koolhaas fez desse projeto uma materialização de sua visão sobre o comportamento contemporâneo, no qual a estrutura representa uma liberdade não somente programática, mas também de fluxos.
Definidos pelo próprio Koolhaas como “embriões em uma placenta tecnológica” (KOOLHAAS, 1995) os volumes amorfos que compõem o projeto concentrariam as atividades da biblioteca – auditório, sala de leitura, etc – como elementos independentes, já que tudo o que se referiria à estrutura e instalações estaria abrigado nos módulos verticais, conferindo total liberdade aos demais elementos. Rafael Moneo, no livro Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais (2008) traz uma interpretação interessante desse projeto quando o define como “uma metáfora zoomórfica, se o tomarmos como corpo que contém órgãos e vísceras cuja posição não parece afetar a forma final do edifício”.
Apesar de se tratar de um projeto arquitetônico que nunca foi construído – e aí o grande desafio em avaliar sua potencialidade – seu mérito conceitual e técnico é indiscutível pois Koolhaas, de fato, parece remexer as vísceras arquitetônicas nesse desenho, invertendo suas classificações, aflorando-as na superfície. Uma liberdade possível graças ao total domínio do projeto arquitetônico como estrutura e composição.
Não é toa, portanto, que esse projeto se torna um importante marco na carreira de Koolhaas já que demonstra sua intenção de percorrer e acolher todas as nuances que compõem o desenho arquitetônico. Um desígnio estrutural materializado como conceito e como projeto. Juntamente com os centros de convenções em Lille (1988-91) e Agadir (1990) – o último igualmente não construído -, a Biblioteca Nacional parece sinalizar na história de Koolhaas um interesse evidente e renovado pela estrutura em si, carregando em seu desenho indagações sobre o processo projetual e o papel do arquiteto. Inquietações estas que surgem de maneira recorrente na trajetória do arquiteto.
Um dos icônicos exemplos em que Koolhaas exterioriza (agora de forma verbal e não projetual) tais questões é visto três anos após o projeto da Biblioteca em uma entrevista ao arquiteto e crítico Alejandro Zaera-Polo (1992), quando profere a seguinte frase:
É incrível como um componente que significa um terço da seção de um edifício e pode representar 50% do orçamento seja, de certo modo, inacessível para o arquiteto, não suscetível ao pensamento arquitetônico. Não se trata de especulação: é como aceitar que entre 30% e 40% da construção simplesmente não seja de sua competência e que você precisa engolir o lixo ridículo que os engenheiros de instalações instalam ali.
A cargo de certa contextualização, é importante clarificar que essa frase surge quando Koolhaas é questionado sobre como articula a estrutura no desenvolvimento da sua pesquisa em arquitetura, apresentando como exemplo a própria Biblioteca Nacional. Em sua resposta, ele amplia o campo da estrutura como sustentação ao abranger todas as instalações em geral. E não é de se admirar que sua análise nasce desde uma porcentagem de valores e pesos estabelecida por meio do traçado do corte. Se Le Corbusier nos deixou a planta livre, Koolhaas nos traz o “corte livre”, ou esse ato como metodologia de projeto aplicada, principalmente, à construção de grandes edifícios. Por meio de tal instrumento, ele nos ensina a pensar a arquitetura verticalmente, ou seja, a sua forma e imagem estão implícitas no corte. A proposta para a Biblioteca Nacional é um ótimo exemplo disso na qual suas estruturas tomam a liberdade de oscilar verticalmente.
Porém, apesar das inúmeras possibilidades de abordagem que a frase de Koolhaas permite, seja na composição formal, seja na sua visão da arquitetura contemporânea, no seu pensamento vertical, entre tantos, esse texto procurará desenvolver dois fatores muito específicos e igualmente intrigantes na frase. Primeiro, o modo como ele parece apresentar uma certa carência de domínio do projeto como um todo advinda da figura do arquiteto; e segundo, uma dualidade, por vezes contraditória, da relação entre arquitetura e engenharia.
Com relação ao primeiro ponto parece, sim, um desafio muito grande – ainda -, para nós arquitetos assumirmos o projeto arquitetônico como um todo e não uma colagem recebendo uma infinidade de apêndices e camadas que possibilitam sua sustentação e funcionamento. Cabos, tubos e condutores crescem nas entranhas dos nossos edifícios, tramas desconhecidas que percorrem cada milímetro do projeto desenhado e ao mesmo tempo não são entendidas como arquitetura, como se ela própria fosse outra coisa.
Para discorrer sobre esse distanciamento entre o projeto arquitetônico e aquilo que lhe possibilita “funcionar”, pragmaticamente falando, é importante refletir aqui, primeiramente, sobre o modo como estudamos a arquitetura hoje – precisamente no que se relaciona à educação brasileira. Raros são os casos em que há um diálogo próximo entre as disciplinas que orbitam em torno do projeto (aí o próprio ato falho-escrito já revela a secundarização das instalações e estrutura em detrimento do projeto arquitetônico).
No ensino de arquitetura a técnica construtiva parece derivar de posicionamentos funcionais e estéticos. Há um desenvolvimento árduo e exaustivo da concepção projetual, no sentido de sua conceitualização e contextualização para, a partir de então, quando a proposta formal estiver devidamente evoluída, entrarem em cena as soluções estruturais e instalações em geral, claro, se assim permitir o curto período até a “entrega final”. Além disso, é importante ressaltar que as disciplinas relacionadas aos cálculos estruturais e instalações geralmente são ministradas por professores externos ao núcleo da arquitetura o que reforça a estigmatização entre as duas profissões e acaba por, de certa forma, desprestigiar a formação técnica dos arquitetos.
Ainda durante o processo de formação, vale ressaltar que, além de não sermos preparados para pensar no projeto como um todo, também, sequer, somos estimulados a coordenar um. No sentido de trabalhar a liderança e coordenação de equipes multidisciplinares já que, teoricamente, o arquiteto como “detentor da ideia original” pode e deve saber ponderar entre os diferentes profissionais envolvidos na elaboração do projeto. Nesse sentido, Koolhaas, algumas linhas após proferir a frase redigida acima, ressalta que, afinal de contas, é “um ‘pensador’ e, portanto, [deve] ‘pensar’ nessas questões [instalações em geral], mesmo que nem sempre seja conveniente” (KOOLHAAS, 1992).
Tal distanciamento entre as disciplinas é reforçado ainda mais quando se parte para o âmbito profissional e surge a real necessidade de dialogar com os outros profissionais envolvidos na execução de um projeto arquitetônico. Relações que, na maioria dos casos, já iniciam levando em consideração a “rivalidade” estereotipada entre os profissionais, alimentando uma convivência desgastante e possivelmente problemática. Com base nisso, Koolhaas afirma algo interessante quando diz que “só depois de ter passado por determinadas experiencias você pode formular tais críticas e rejeições. É uma questão de ganhar confiança, e talvez certa arrogância, acerca desses temas” (KOOLHAAS, 1992). Em tal frase o arquiteto parece assumir que a relação entre a arquitetura e engenharia deve ser retroalimentada de maneira em que as ambas experiencias caminhem para um maior domínio do projeto em que se faz necessário assumir “certa arrogância” para impor ideias e concepções.
Entretanto, ao mesmo tempo em que Koolhaas problematiza, de certa forma, a relação entre arquitetura e engenharia, em diversas oportunidades ressalta a parceira fundamental travada há mais de 20 anos entre o OMA e a empresa de engenharia Ove Arup a qual Koolhaas destina muito do seu mérito como arquiteto de obras extraordinárias. Em um desses trechos, ele exalta a importância de Cecil Balmond, engenheiro da Arup, na construção dos seus projetos, assumindo as muitas vezes em que Balmond se mostrou “paciente com nossas demandas irracionais e várias vezes considerou nosso amadorismo seriamente” (1995). Torna-se evidente, portanto, nos projetos concebidos na relação OMA-Arup (Casa da Música, Serpentine Gallery Pavilion 2006, Maison Bordeaux e a Sede CCTV) a perfeita síntese entre as duas disciplinas.
Aprofundando essa relação entre arquitetura e engenharia, percebe-se que Koolhaas-Balmond não é o único exemplo notório de afinidade positivamente construtiva entre ambos os campos. Para se aproximar do nosso contexto, cabe citar a relação entre Oscar Niemeyer e Joaquim Cardozo que foi de grande importância para o desenvolvimento das estruturas em concreto armado no Brasil (Catedral Metropolitana, o Palácio da Alvorada, Congresso Nacional, entre outros). Contudo, é importante ressaltar que os dois casos tratam de arquitetos formidáveis com linguagem própria e conhecimento estrutural que tornam possível o elo entre o projeto e obra, mesmo em suas fases iniciais, quando ele ainda é um amontoado de rabiscos na prancheta. De qualquer forma, pode-se compreender, então, que obras extraordinárias como a Casa da Música ou a Catedral Metropolitana de Brasília somente foram possíveis graças à completa fusão entre arquitetura e engenharia, protagonizada pelas duplas acima citadas.
Tendo em vista tal conjuntura, nesse momento, se faz importante retomar os dois pontos trazidos da frase de Koolhaas em entrevista. Parece fundamental entendermos e assumirmos que a concepção de um projeto, e sua posterior execução, é um trabalho colaborativo em que diferentes disciplinas precisam trabalhar juntas. É, portanto, uma relação complementar na qual uma não existe sem a outra. Dessa forma, é preciso se desprender da arcaica ideia em que as disciplinas de arquitetura e engenharia são vistas com rivalidade e assumir esse ofício com um esforço conjunto em que se pensa colaborativamente. Uma construção em que cada qual com sua especialidade tem voz e domínio sobre suas responsabilidades, sabendo sempre dialogar com o outro. Nisso, vale ressaltar a importância em travarmos parcerias duradouras e que impliquem certa sinergia, buscando profissionais qualificados e que, mais do que isso, entendam a arquitetura de forma similar à nossa.
Desfazendo o estigma que alimenta a contradição entre arquitetura e engenharia, outro ponto importante para ser retomado está relacionado ao domínio do arquiteto perante o projeto como um todo. Nesse sentido, é fundamental que entendamos o projeto arquitetônico como um organismo complexo, ou seja, é necessário um esforço dos arquitetos como pensadores e criadores, assim como Koolhaas cita, e isso envolve o domínio de todas as camadas propostas (sejam elas aparentes ou não) que devem se materializar na obra. Dessa forma, cabe ao arquiteto se aprofundar melhor em suas concepções, desde o início do desenho, buscando soluções estéticas e funcionais aliadas à estrutura e instalações, assim como foi feito na proposta para a Biblioteca de Nacional.
A proposta do OMA não venceu esse concurso. Seus 100 metros de altura extrapolavam três vezes o tamanho pré-definido no edital, mas sua concepção significou muito mais do que a própria obra justamente porque suas soluções estéticas e funcionais, intrinsecamente aliadas à estrutura, demonstraram uma preocupação e maturidade de projeto muito antes da sua possível construção. É fato que nunca saberemos como a Très Grande Bibliothèque seria se saísse do papel, mas, seguramente, Cecil Balmond seria fundamental para que as maquetes do OMA se tornassem realidade.
Referências bibliográficas
Alejandro Zaera-Polo. Arquitetura em diálogo, São Paulo: Cosac-Naify, 2015.
Gabriela Fávero. Processo projetual contemporâneo: relações entre arquitetura e engenharia estrutural e a casa Bordeaux, Curitiba, Pós-graduação latu-senso: projeto de arquitetura: da concepção ao edifício, 2016.
Rafael Moneo. Inquietações teóricas e estratégias projetuais na obra de oito arquitetos contemporâneos, São Paulo, Cosac Naify, 2008.
Rem Koolhaas. S,M,L,XL, Nova York, The Monacelli Press, 1995.
Camilla Ghisleni é Arquiteta e Urbanista, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Urbanismo, Cultura e História da Cidade pela mesma universidade. É sócia-fundadora do escritório Bloco B Arquitetura e colabora com o ArchDaily Brasil desde 2014.